23 de mai. de 2011

Música, expressão na liturgia. Algumas notas. - Maria Lúcia Pascoal

Música, expressão na liturgia. Algumas notas. Maria Lúcia Pascoal (Professora e pesquisadora da área de Teoria e análise Musical no Instituto de Artes da Unicamp) nos brinda com um belíssimo artigo sobre a música na liturgia, fazendo um retrospecto histórico e nos levando a uma interessante viagem musical, principalmente porque teve o cuidado de colocar vários links que nos fazem conhecer os diversos tipos e estilos de música que fizeram parte da liturgia desde seus primórdios, até os dias atuais. Portanto, é um artigo histórico e musical. Saboreiem...      


Música, expressão na liturgia. Algumas notas.
                                                                                              *Maria Lúcia Pascoal         

Resumo: Este artigo tem por objetivo observar aspectos da música sacra, praticada ou não na liturgia em diversos períodos históricos. Faz um recorte, procurando salientar compositores representativos das épocas citadas e os exemplos musicais podem ser acessados através da sugestão de links, nos quais os tópicos poderão ser ouvidos e conhecidos. Chega à conclusão de como a elaboração musical se torna História e ao mesmo tempo se afasta da participação das assembléias nas igrejas, até as mudanças trazidas pelo Concílio Vaticano II.

O Gregoriano
A Música sempre foi uma presença constante nas funções ligadas à liturgia, não importa de que religião. Nos estudos sobre a História da Música no Ocidente, as primeiras manifestações que se conhece se referem ao chamado cantochão, música essencialmente vocal, transmitida oralmente e que foi a forma de expressão musical das assembléias dos primeiros cristãos. Como esses cantos mantivessem diferenças entre as diversas regiões de que se originavam, surgiu a necessidade de uma unificação, para que fossem reconhecidos por todos e mais facilmente praticados. Quem procedeu ao início desse trabalho foi o Papa S. Gregório I, o Magno (590-604), depois continuado por outros, também Gregórios II e III, até o ano de 741, por isso o nome de canto gregoriano, usado até hoje. Esses cantos eram praticados em uníssono (uma voz só), se desenvolviam em pequenas extensões e os coros masculinos alternavam intervenções com as assembléias sem a participação de instrumentos, no que é o centro da liturgia católica: a Missa. Uma das características do canto gregoriano era o perfeito entrosamento e a expressividade entre música e texto. Com o crescimento da atividade, a transmissão até então oral, passa a ser anotada, trabalho realizado nos mosteiros europeus e se constitui nos primeiros exemplos de escrita musical no Ocidente. Todas as melodias desses cantos, praticados nas Missas e Ofícios foram reunidas na coleção que hoje conhecemos por Liber usualis, que mantém a escrita original[i]. E assim a música dos cristãos fez parte da História.


O início da polifonia
No centro da liturgia cristã estava a Missa estruturada em partes fixas e móveis. A expressão musical da Missa seguiu a Ordo Missae (Ordinário da Missa), constituída pelas fixas: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. Esse formato acabou se tornando uma individualidade musical e os compositores passaram a escrever Missas para as funções litúrgicas, além de peças avulsas para as partes móveis e outras para várias ocasiões.
Porém, a prática musical não iria se contentar em continuar em uníssono e sem instrumentos, logo se desdobrou aos poucos em outras linhas de melodias, que se combinava com a principal, criando a polifonia (várias vozes ou partes simultâneas). Os primeiros processos consistiam em se partir de uma melodia do gregoriano e acrescentar a ela outra melodia. As duas soavam juntas e se combinavam.  Mas a Igreja não foi favorável a essa prática e, no Concílio de Lyon (1274) criou cânones para deter o que considerava ser pernicioso para os cultos. O argumento era de que o movimento das vozes dificultava o entendimento do texto. No século seguinte, o Papa João XXII (1324) reforçou essa oposição à música a duas ou mais vozes.


A polêmica continuou enquanto se consolidava a tendência para a música se desenvolver a várias vozes, cada vez mais elaboradas. Defendendo novas bases e propondo uma renovação musical, surge no século XIV e se desenvolve nas terras de França, Itália e Inglaterra, um movimento que se chamou Ars Nova, em oposição ao que havia antes, chamado de Ars Antiqua.  Um dos representantes desse pensamento musical é o compositor Guillaume de Machaut, que viveu entre 1300 (?) e 1377. Dele se conhece a que é considerada como a primeira Missa completa, a quatro vozes[ii]·, a Missa Notre Dame.


O que mudou na prática litúrgica com a chegada da polifonia foi o fato da assembléia não participar mais cantando, mas somente ouvindo, pois a elaboração musical foi se tornando muito trabalhada, o que demandava preparação anterior. A base das composições estruturadas a várias vozes poderia ser desde uma melodia gregoriana já conhecida até canções folclóricas e árias populares e as Missas levavam os nomes dessas canções, como Salve Regina, Ave Maris Stella, Adieu mes Amours, entre muitas outras. Só a ária  L’Homme Armé (O Homem Armado) foi usada por um grande número de compositores.


O Renascimento

É importante assinalar que o canto gregoriano continuou a fazer parte do repertório litúrgico, apesar das grandes transformações nas relações entre o homem e o mundo que irão marcar os séculos XV e XVI, com o Renascimento. Passou-se da visão de mundo teocêntrica (Deus como centro) para a antropocêntrica (homem como centro), quando todas as Artes floresceram enormemente. A música dessa época é marcada pelo alto desenvolvimento da polifonia, dos instrumentos musicais, dos estilos característicos de regiões, de formatos inovadores. Ao lado da música profana, os compositores continuaram a criar muita música sacra, sempre com base de textos em latim. Entre os compositores representativos, estão Josquin des Prez, Johannes Ockegem, Orlando di Lasso, Palestrina, Tomás de Victoria, e muitos outros.  A polifonia praticada na Inglaterra e a franco-flamenga desenvolvem características especiais. Vem dessa época o costume das igrejas manterem coros, escolas de música e os postos de regente e compositor, o Mestre-capela.

Link: Nos links abaixo, alguns trechos das obras destes autores:


O período do Renascimento, centrado nas características do Humanismo, fez uma grande crítica à Igreja Católica, o que provocou um cisma, a Reforma realizada por Martinho Lutero (1483-1546). Monge agostiniano, professor de Bíblia na Universidade de Wittenberg (Alemanha), Lutero conhecia a música dos compositores da época, tocava instrumentos e cantava. Entre os pontos básicos de seu pensamento estava a consideração de que a Igreja é a Assembléia do Povo de Deus e se fazia necessária a participação da comunidade dos fiéis na sua própria língua. Para tanto, se entregou à imensa tarefa de reorganizar a música litúrgica na que se chamou igreja luterana, contando com a ajuda dos músicos Conrad Rupff e Johann Walter. Voltou-se ao Saltério (Salmos), compôs vários Salmos, foram selecionados os melhores cantos corais (na língua alemã) e editados em um Hinário, que teve uma primeira edição em 1524. Desta constavam 38 cantos alemães e 5 latinos[iii].
A partir da Reforma, as igrejas que foram chamadas de protestantes desenvolveram a música em seus cultos, tendo sempre a preocupação de formar cantores, coros, regentes e instrumentistas. 
Na Igreja Católica do século XVI, também havia latentes movimentos de insatisfação contra os muitos abusos que eram cometidos nessa época e se iniciou a Reforma Católica, principalmente preocupada com a volta às origens do misticismo e da espiritualidade. Em 1545, o Papa Paulo III convocou o Concílio de Trento, que durou até 1563 e foi continuado pelos Papas Marcelo e Pio IV. Na deliberação sobre assuntos ligados a liturgia e música, os documentos recomendaram mais simplicidade e inteligibilidade na música polifônica da Igreja.
É então que se situa o compositor Giovanni Pierluigi da Palestrina, assim chamado devido a seu local de nascimento em 1525 ou 26, considerado “o primeiro músico da Igreja Católica”[iv]. Esteve sempre ligado à música sacra, tendo percorrido todos os passos da carreira musical, como cantor de coral, organista, regente e compositor na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Palestrina compôs cerca de cem Missas completas, além de Salmos, Hinos, e Motetes. Estes variavam entre quatro e doze vozes[v]. Desenvolveu a polifonia em pequenas idéias musicais que passam de uma a outra voz, em variações rítmicas, o que se tornou característica de sua composição.


O Barroco
A música “a capella”[vi] de Palestrina porém, não continuou muito além dele e seguiram-se tempos em que a música sacra aderiu ao Barroco (1600-1750), período de grande desenvolvimento instrumental, com música praticada nos templos com orquestras e coros muito desenvolvidos. O que bem representa essa época são as composições de Andrea Gabrielli (1520-1586) e Giovanni Gabrieli (1557-1612), organistas na Basílica de S. Marcos, em Veneza. Introduziram principalmente os instrumentos nas grandes obras corais e trabalharam o equilíbrio entre esses grupos, os quais eram distribuídos entre os vários espaços da Basílica na realização de efeitos acústicos.


Como o Barroco deu um grande incremento à música instrumental, esta também era praticada nas igrejas, tanto em pequenos conjuntos como em solos. Nos momentos solenes das Missas, como a Consagração, apresentavam-se solos de violino ou órgão.
Ao falar em Barroco, porém, é preciso se deter em uma figura dessa época, mas não representante desse fausto, que viveu na Alemanha, sendo cantor, organista, compositor, regente, Mestre-Capela, principalmente nas cidades de Weimar e Leipzig: Johann Sebastian Bach (1685-1750). Estava ligado à igreja luterana, mas sua arte transcende toda a funcionalidade para a qual foi pensada e se torna universal, um dos pilares da música no Ocidente. De suas composições sacras, salientam-se as Paixões, segundo Mateus e João, as Cantatas, que eram apresentadas semanalmente, perfazendo cinco ciclos anuais, os Oratórios, tudo isso ao lado de grande quantidade de música instrumental. Nos antigos Corais luteranos, criou peças instrumentais para órgão, os Prelúdios Corais e também os harmonizou a quatro vozes, formando a grande coleção dos 371 Corais. Dentre suas composições ainda são de se salientar a grande Missa em si menor, para a liturgia católica (Ordinário completo) e quatro missas luteranas (Kyrie e Gloria somente). A música de J. S. Bach conseguiu reunir a polifonia, com todos os seus processos de elaboração trabalhados desde o Renascimento e consolidar o novo pensamento que surgia então: a tonalidade, sistema com base nos sons simultâneos (acordes), com seus contrastes, conflitos e repousos. Dessa forma, J. S. Bach sintetiza uma parte da história da música e abre para outra, que defende conceitos os quais prevaleceram por volta dos trezentos anos seguintes. É mais um exemplo da música sacra fazendo História.
Confira nos links abaixo um pouco da obra de Johann Sebastian Bach:


Os séculos XVIII e XIX
Os tempos posteriores a J. S. Bach nos mostram compositores que trabalhavam para a aristocracia, tanto da realeza quanto da hierarquia da Igreja e de suas produções musicais constava muita música sacra, em sua maioria para ocasiões especiais, como coroações e grandes festas. E as Missas se modificaram bastante: corais se juntaram à orquestra sinfônica, partes solistas se tornaram muito desenvolvidas e formas musicais que se consolidavam constituíram-se nas partes do Ordinário, havendo muitas vezes liberdades quanto aos textos. É o que se pode ouvir em Joseph Haydn (1732-1809) - Missa in tempore belli e Missa Sanctae Caeciliae, nas oito grandes Missas de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), entre as quais a da Coroação K. 317, as dez Missas breves e o famoso Requiem. De Mozart ainda se conhece um bom número de peças avulsas, sobre textos de Kyrie, Ofertório, Salmos e Hinos, geralmente a quatro vozes e orquestra ou órgão. Conheça alguns trechos destas obras nos links a seguir:


Entre os séculos XVIII e XIX outra figura de compositor domina, revoluciona e se torna outro pilar da música ocidental com a sua música instrumental solo e sinfônica: L. Van Beethoven (1770-1827). Além de inovar e ampliar formas musicais, Beethoven mudou o relacionamento da profissão do compositor na sociedade. Tornou-se independente de nobrezas e administrava sua vida como profissional autônomo. Quanto à música sacra, concentrou sua criatividade na Missa solemnis. Amplia em número e timbres a orquestra de Haydn, o coral toma grandes proporções, os solistas, tudo para expressar-se nesta grande música litúrgica que, ao lado da IX Sinfonia, caracteriza bem o seu pensamento e sua crença no Humanismo.


Os compositores do século XIX também se interessaram pela música sacra e pela Missa em particular. Entre eles, conta-se Franz Schubert (1797-1828), Hector Berlioz (1803-1869) Missa dos Mortos (Requiem), para tenor solo, grande orquestra, e orquestra de metais.
Anton Bruckner (1824-1896) escreveu sete Missas, Salmos e um grandioso Te Deum.
Da obra de Franz Liszt (1811-1886) constam cinco Missas, entre as quais a Missa de Gran e a Missa Húngara de Coroação, um Requiem, ao lado de Salmos, Hinos e seis Oratorios. 
Gabriel Fauré (1845-1924) Requiem, Messe Basse, para vozes femininas e órgão. 
Cada vez mais a música sacra ia tomando importância histórica e artística, mas não servia mais à assembléia de fiéis na liturgia das Missas.


Século XX
O século XX marca grandes transformações no pensamento musical consolidado por J. S.Bach e continuado com as aberturas trazidas por Beethoven e os compositores do século XIX. Os princípios da tonalidade são contestados, especialmente no que era considerado som dissonante e a criação musical se abre a novos horizontes com novos relacionamentos sonoros. O timbre, elemento musical antes apenas tratado como efeito, se torna cada vez mais importante na composição. São muitas as tendências que surgem e os compositores se lançam em experimentações e criam novos conceitos musicais.
Porém, quanto à música sacra, não há contribuição dos compositores que marcaram as mudanças de metade deste século, como Debussy, Schoenberg, Bártok, Webern, entre outros, exceção feita a Stravinsky (1882-1971), com uma Missa, que segue a liturgia, mas raramente é executada como tal, pois é também para dez instrumentos de sopro[vii].  A composição de hinos, coros, música para órgão e missas continuou com compositores especializados que, na sua maioria, não se aventuraram nas transformações ocorridas e preferiram seguir o estabelecido nos séculos anteriores.


Capítulo à parte são os ‘negro spirituals’, originários de canções dos ex-escravos afros americanos que, misturados a hinos religiosos tiveram grande desenvolvimento nos Estados Unidos da América e criaram uma das bases do jazz, nas primeiras décadas do século XX.  
                  
Pode-se observar como a música sacra sempre atraiu compositores e se fez representar na História. Ao lado disso, na Igreja católica o canto gregoriano continuou a ser praticado, não mais por toda a assembléia como nos primeiros tempos, mas nos mosteiros pelos monges e conventos de ordens religiosas em geral e nas missas festivas. 
Essa situação só vai ser mudada com o Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado pelo Papa João XXIII e terminado por Paulo VI que, passando a considerar que a Igreja é o Povo de Deus[viii] mudou consideravelmente a liturgia, pois esta passou a:
- ser celebrada no vernáculo, o que incluiu a música cantada;
- aproveitar as manifestações culturais de cada país, o que trouxe a música popular para a igreja, com instrumentos como violão e percussão, entre outros;
- constituir a assembléia como participante, não mera assistente, o que implicou na prática de músicas que todos possam cantar.
Depois do Concílio Vaticano II, a música sacra precisou criar um novo repertório e procurar uma boa comunicação. Hoje, às vésperas de comemorar cinquenta anos, pergunta-se: como vai a música depois do Concílio?
Mas esse é um assunto complexo e pode ser tema para outro artigo.


[i]  A notação original constitui-se de pauta de quatro linhas e claves de Do e Fa.
[ii] As quatro vozes básicas são formadas por: soprano e contralto, as agudas e graves femininas; tenor e baixo, as agudas e graves masculinas. 
[iii] Lang, p. 166.
[iv] Lang, p. 185.
[v] Por vozes, entenda-se linhas diferentes.
[vi] “a capella” é um termo que significa música coral sem qualquer interferência de instrumento.
[vii] Griffths, p. 148.
[viii] Lumen Gentium. Cap. II. pp. 19- 38.


Referências bibliográficas

GRIFFITHS, P. Enciclopédia da música do século XX. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LANG, P. H. Music in Western Civilization. New York: Norton, 1963.
Lumen Gentium. Constituição dogmática do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2006.
Liber Usualis Missae et officii. Tournai: Desclée, 1963.
SADIE, S. (Ed.) Grove´s Dicitionary of Music and Musicians. 2 ed.London: McMillan, 2001.

* Maria Lúcia Pascoal – Professora e pesquisadora da área de Teoria e análise Musical no Instituto de Artes da Unicamp.

Um comentário:

  1. Muito esclarecedor este texto, hoje sabemos o quanto à musica contribui, anima e influi para uma liturgia bem celebrada, principalmente por possibilitar a participação da assembléia nos cantos liturgicos, pois consideramos que a liturgia é ação de Deus em favor do povo e ação do povo em relação a Deus e isso acontece se as pessoas participarem conscientemente e ativamente.

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